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quarta-feira, janeiro 13, 2010

DR. JOAQUIM AURÉLIO NABUCO D'ARAUJO - HERÓI NACIONAL

História

Herói nacional, para sempre

Estadista, historiador, diplomata e sedutor. E, acima de tudo,

o homem que encabeçou a mais justa de todas as causas:

a batalha da opinião pública que terminou por convencer a

sociedade brasileira a se mobilizar para acabar com a escravidão



Vilma Gryzinski



Num domingo, dia 13, a princesa Isabel desceu a serra. Vinha de Petrópolis e ia para um lugar de honra na história. Com os olhinhos azuis iguais aos do pai, contemplou a multidão tomada de enorme comoção que estava na frente do palácio imperial, no centro do Rio. Usava um vestido de seda marfim, enfeitado com rendas francesas, e assinou com mão firme as palavras de explosiva simplicidade escritas no documento à sua frente: "É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil". Para quem olha o passado com displicência retroativa, a história termina aí: transformações econômicas e políticas empurraram um regime falido a aceitar a libertação da massa vilmente explorada, com a participação de um ou outro representante da elite esclarecida. Mas afastemos um pouquinho a cortina alegórica que cerca o 13 de maio de 1888. Assinada a lei, Isabel voltou-se para o homem alto e elegante que estava a seu lado naquele momento emocionante. "Estamos reconciliados?", perguntou. Como perfeito cavalheiro que era, Joaquim Nabuco acedeu e beijou a mão da princesa. Depois assomou à janela, para saborear o momento de glória e a adulação da massa. Aquele dia era dele, mais do que de qualquer um.

Não existe a mínima prova histórica, ainda mais no caso de uma princesa carola e apaixonada pelo marido, mas não é impossível imaginar pelo menos uma pontinha de flerte na pergunta de Isabel. As mulheres não resistiam a Nabuco. Aliás, os homens também não. No campo das ideias e da camaradagem viril, evidentemente. Joaquim Nabuco, que ressurge das brumas históricas ainda que fugazmente, em virtude do centenário de sua morte, neste dia 17, foi um personagem tão monumental que tudo em torno de sua extraordinária vida parece ser exagerado. Desvendada, a névoa do mito se revela, no entanto, tecida de verdade. Candidato a maior estadista da história nacional, embora no papel nunca tenha sido mais do que um simples deputado, Nabuco tem um título incontestável: foi o mais importante, o mais eloquente e o mais popular dos abolicionistas. Protagonizou o movimento pelo abolicionismo e, ao mesmo tempo, refletiu sobre a história que se desenrolava à sua volta, captando com a força de um intelecto preciso como laser a importância orgânica da escravidão na sociedade brasileira. No processo, como definiu o grande historiador Evaldo Cabral de Mello, escreveu "a mais brilhante análise do papel desempenhado pela escravidão na formação social e política do Brasil".



"Absorvia-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância", escreveu ele sobre a escravidão que conheceu como menino, num engenho pernambucano. "Por felicidade da minha hora, eu trazia da infância e da adolescência o interesse, a compaixão, o sentimento pelo escravo - o bolbo que devia dar a única flor da minha carreira." Não há quem não se arrepie ao ler como o jovem Nabuco descobriu que a tepidez do que parecia a ordem natural das coisas, de menino mimado pelas mucamas, era na verdade brutal e amarga. Era menino ainda, estava sentado no patamar da escada superior da casa onde havia sido criado pela madrinha, quando surgiu um jovem de corpo castigado. Lançando-se a seus pés, o escravo pediu que fosse comprado, salvando-o assim do senhor que o supliciava. "Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava", descreveu Nabuco. Nasceram ali as sementes que o levaram a, mais tarde, autodesignar-se representante do "mandato do escravo", explicado com palavras de impressionante contemporaneidade: "Delegação inconsciente da parte dos que a fazem, interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que não se pode renunciar".

À luz da história no que tem de mais estéril - a entediante versão mil vezes repetida do 13 de maio e seus antecedentes -, é difícil reproduzir a força avassaladora que o movimento contra a escravidão despertou em todo o país. O que o Brasil teve de pior - o comércio, a servidão, a exploração e a indizível violência mil vezes cometida contra seres humanos - gerou o que o Brasil de melhor conseguiu oferecer, sob a forma da luta abolicionista. Foi uma história de homens tomados de paixão por uma causa justa e, entre eles, nenhum mais apaixonado do que o jovem pernambucano de família ilustre, pai, avô e bisavô senadores do Império, com muito berço e quase nenhum dinheiro, que se tornou o que de mais parecido poderia existir no século XIX com uma celebridade ao estilo contemporâneo, aclamado, paparicado e adorado.



Nabuco pensava como um gigante histórico, polemizava como um estivador e jogava para a plateia como um ídolo pop. Travada, em grande parte, no centro da vida intelectual da época - os teatros -, a campanha abolicionista forneceu o palco ideal a um Nabuco simultaneamente confiante, arrojado, pedante, metido. Ou, na definição da cientista social Angela Alonso, autora da ótima biografia Joaquim Nabuco (Companhia das Letras), um "enamorado de si mesmo", impelido ao fulcro do cenário nacional tanto pelo imperativo moral quanto pelo desejo de aplausos e aprovação - que artista não se identificaria com ele? Entre os muitos palcos, nenhum foi mais consagrador do que o do Teatro de Santa Isabel, no Recife natal, onde as mulheres faziam fila nos camarotes especiais, suspiravam, lançavam pétalas de rosas e lencinhos com seu rosto pintado. No ápice da campanha e da popularidade, também se tornou marca de cigarros (Nabuquistas e Príncipes da Liberdade), de cerveja (Salvator Bier) e até de um modelo de chapéu (O Abolicionista, com um retrato dele). Pois, ainda por cima, o herói da causa era bonito. "Branco alvíssimo", numa descrição da época, media 1,86 metro e tinha olhos de mormaço, como a Capitu que ainda haveria de nascer da cabeça de seu amigo Machado de Assis. Correspondia, em tudo, até no bigodão, uma novidade em relação às barbas da época, ao apelido de Quincas, o Belo. Nos retratos e fotos, aparece sempre de mãos à cintura ou com dois dedos no bolso do colete ou em alguma outra pose que gritasse: sou o dono do mundo. Era assumidamente metrossexual, ou, como se dizia no século XIX, um dândi, o tipo masculino preocupado com a aparência e sensível a modismos. Usava robe de seda japonesa, malas Louis Vuitton e senso de humor. "Riem e se cutucam quando entro na Câmara, culpa do meu terno de casimira clara, do sapato inglês e do chapéu de palha", escreveu a seu eterno e complicado amor, Eufrásia Teixeira Leite (leia mais). "Só para provocar usei outro dia a pulseira de ouro. Aquela que me deste." A joia já havia dado o que falar. Numa das campanhas eleitorais (ganhava, perdia, ganhava, perdia), os adversários o apelidaram, maldosamente, de "candidato da pulseira".



Quem o julgasse apenas pela aparência polida incorreria em grave erro. Nabuco sabia bater. No calor da campanha abolicionista, que inflamava o país inteiro mas esbarrava na resistência composta de boa parte dos políticos (tanto liberais quanto conservadores) e dos fazendeiros do oeste paulista, do Vale do Paraíba e da zona cafeeira de Minas, escreveu que o Brasil estava dividido em duas falanges: "A pirataria e a civilização". Tinha, também, seu lado Tancredi, o personagem do Gattopardo de Lampedusa (e do filme de Visconti), e sua excessivamente usada frase sobre as mudanças necessárias para não mudar a ordem essencial das coisas. Cheio, portanto, de contradições, sofria períodos de depressão, pensou em emigrar para a Austrália ou a Nova Zelândia, vivia dividido entre o Brasil e a Europa. "De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país", escreveu. Enfim, a complexidade e os questionamentos que se esperam dos intelectos superiores. Foi um monarquista esclarecido que escreveu contra Pedro II o panfletário O Erro do Imperador (daí a frase de Isabel no dia da abolição), um interessado na "política que é história" que conheceu o que a outra política tem de pior, um deputado que entrou para a Câmara "tão inteiramente sob a influência do liberalismo inglês como se militasse às ordens de Gladstone" e que acabou incluído em artigo do Times de Londres na turma de "comunistas" que usavam o abolicionismo radical para subverter a ordem.

Devido à multiplicidade e à riqueza tanto de sua personalidade quanto de sua obra política, até hoje é possível beber na fonte nabuquista a partir de diferentes perspectivas. Como em todas as grandes obras, cada um encontra em Nabuco o que procura - ou, melhor ainda, o que nem sabia existir. À esquerda, causa simpatia sua defesa da nacionalização das terras para uma reforma agrária que acabasse com a miséria provocada, em especial no Nordeste, pelo sistema de grandes propriedades, "fazendas ou engenhos isolados, com uma fábrica de escravos, com os moradores das terras na posição de agregados do estabelecimento, de camaradas ou capangas". Mas é difícil competir com sua análise da "superstição do estado-providência", pois, sendo o estado "a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego público".

Voltando ao 13 de maio. Feito o beija-mão, Joaquim Nabuco recebeu as ondas intermináveis de aplausos. "Delírio no recinto, meu nome muito aclamado", anotou em seu diário. Quem acha que o Carnaval dura muito não imagina o que foi a festa da libertação dos escravos: sete dias de feriado nacional, todo mundo na rua, bandas e cortejos, prédios enfeitados, espetáculos gratuitos nos teatros. No dia 17, quando aconteceu a missa celebratória diante de 20 000 pessoas, Nabuco e Isabel de novo se cruzaram. Ela passava de carruagem, cercada pela massa eufórica. Nabuco surgiu e, como um Moisés no Mar Vermelho, caminhou entre a multidão, que se abriu para lhe dar passagem. Cumprimentou a princesa e lhe ofereceu camélias brancas, a flor do abolicionismo. Era festa, mas o destino dela e da monarquia que representava já estava selado. Sabendo disso, Nabuco prometeu a si mesmo: "Eu hei de ser o último dos monarquistas. Preciso bater-me pela princesa, a nossa Lincoln, como me bati pela abolição". Como homem honrado, cumpriu o prometido.



Parece que foi ontem

As imagens da escravidão que estão na memória de muitos de nós são as gravuras de Debret - meio apagadas, distantes, coisa de muito tempo atrás. Por isso é sempre um choque descobrir que a ignomínia do trabalho escravo conviveu por bom tempo com a fotografia, uma das novidades tecnológicas que inauguraram a era contemporânea. À exceção do impressionante e anônimo flagrante da mulher na liteira, com dois carregadores, as fotos aqui reproduzidas foram feitas por nomes conhecidos no século XIX, fundadores de estúdios fotográficos importantes. O alemão Alberto Henschel fotografou as duas mulheres, a babá com o menino e a do retrato ao lado, ambas belas e fortes. Marc Ferrez, o filho de franceses que mostrou tantas e tão deslumbrantes belezas do Rio, fotografou os escravos na colheita de café. O suíço Georges Leuzinger congelou no tempo a fazenda arrancada à rocha viva em Jacarepaguá, as crianças negras em andrajos, o menino branco todo arrumadinho no cavalo de brinquedo. Eles todos são nós e nós somos eles.









História

Não havia outra como ela

Nabuco amou a única mulher que estava no mesmo patamar

que ele - e, talvez exatamente por isso, nunca se casaram



Vilma Gryzinski



Um amor tempestuoso, complicado e globalizado por uma mulher tão fora dos padrões da época que, apesar da paixão mútua e incendiária, não quis se casar com ele. Difícil inventar história pessoal melhor para acompanhar a prodigiosa carreira pública de Joaquim Nabuco do que seu caso do tipo vai e volta com Eufrásia Teixeira Leite, provavelmente a única mulher de seu tempo que manteria um diálogo de igual para igual com ele. E que diálogo. As cartas iam e vinham, ao sabor das brigas e reatamentos. Ela saiu do casarão de 22 cômodos em Vassouras e foi morar em Paris. Não queria voltar para o Brasil. Ele ia e não ficava: França, Itália, Inglaterra, Estados Unidos. Não conseguia não voltar para o Brasil. Ela já era rica e ganhou mais dinheiro ainda no exterior. Transformou-se em investidora profissional: especulava com commodities, comprava títulos públicos, passava os dias trancada no escritório. Ele, com as finanças sempre apertadas, era sugado para o palco público da política. Ela oferecia ajuda para financiá-lo - imaginem isso no século XIX. "Eu tenho algum dinheiro e não sei o que fazer dele, compreende que me é muito mais agradável emprestar a si que a um desconhecido", escreveu, friamente, ten-tando fingir que propunha um negócio interessante para não ferir o delicado ego masculino. Ele, claro, ficou ofendidíssimo. Brigaram, voltaram.

Na biografia romanceada Mundos de Eufrásia (Editora Record), a autora Claudia Lage reconstitui o conturbado relacionamento. Nabuco e Eufrásia conheceram-se num passeio em família na enseada de Botafogo, ela com 12 anos, ele com 13 - idade suficiente para iniciar uma galanteadora correspondência. Aos 15, o jovem Quinquim parou de escrever. Oito anos depois, eles se reencontraram num recital de poesia no Rio. Eufrásia já uma mulher "aprumadíssima, elegante, linda", segundo um biógrafo, o busto, como se dizia pudicamente na época, projetado, cinturinha afinada no espartilho, suntuosa ca-beleira negra, sobrancelhas grossas e marcantes. Claudia Lage imagina o reencontro dela com Nabuco como uma daquelas cenas românticas em que apenas um beijo na mão desencadeia carga erótica arrepiante: "Beijou ávido e longamente a palma, como se sorvesse, resistindo ao impulso maior de sair daquela parte e beijá-la inteira".



As fãs de Crepúsculo podem parar por aqui. Pois, ao contrário do que se poderia imaginar num namoro do século XIX, as coisas entre Eufrásia e Nabuco evoluíram, e muito. Para Claudia Lage, o romance passou dos salões aos lençóis quando os dois viajaram juntos de navio, o Chimborazo, para a Europa. É possível, pois muitos anos depois, numa volta passageira ao Brasil, ela escreveu: "Não sei que influência tem na sua vida a viagem do Chimborazo. Eu por certo sem ela não estaria aqui". Em Paris, eles combinaram casamento pela primeira vez. Depois, desmancharam, iniciando um ciclo que se repetiria nos catorze anos seguintes. Sobre os motivos da indecisão de Eufrásia, os biógrafos tendem a achar que ela cedia a uma promessa feita ao pai, que no leito de morte pediu às filhas que não se casassem. Além da natureza estranha do pedido, ainda mais à época, pesa contra o fato de que Eufrásia já era livre, rica e independente. Nem a família de barões da região de Vassouras, à direita de Gêngis Khan, poderia impedi-la.

Os planos de casamento foram muitas vezes retomados. Mas coração era uma coisa, cabeça outra. Existem, sim, mulheres que, como os homens, pesam os prós e os contras do casamento em relação à liberdade - e à solidão - da vida sem um par. Quando esteve no Rio, hospedada num hotel retirado para preservar a intimidade, derreteu-se. Ele teve de partir em campanha eleitoral, ela de repente decidiu voltar a Paris. Nabuco ficou sem mulher, sem dinheiro e perdeu outra eleição. Acusou-a de abandoná-lo e fazê-lo sofrer. "Tenho mil saudades, nem penso em outra cousa senão na Tijuca, no hotel dos Estrangeiros e em tudo o que se passou", respondeu Eufrásia. Novamente, ele a pediu em casamento. Novamente, ela desconversou - "Casar-me logo, isso infelizmente não posso lhe dizer". Cada vez mais rica, ela se vestia com Charles Frederick Worth, o inglês radicado em Paris que inventou a alta-costura, e ganhou o apelido de "dama dos diamantes negros" por causa da moda de usar joias costuradas na roupa e presas nos cabelos.

Nabuco não era nenhum santo. Enquanto durou o romance com Eufrásia, namorou senhoras casadas, flertou com beldades solteiras e manteve fogosa correspondência com Sarah Bernhardt, a Madonna da época. Da primeira vez que esteve em Washington, como diplomata, queixou-se: "Fora do casamento não há nada aqui". Tinha falta das aventuras extraconjugais. Por causa da paixão por Eufrásia, ficou solteiro até a avançadíssima idade de 39 anos. Por fim, casou-se com a jovem Evelina, de boa família e disposição dócil, em tudo diferente de Eufrásia. Sem falar no dote de 30 000 libras, que ele torrou quase imediatamente: aplicou tudo no que se revelaria, ao longo dos tempos, um dos piores investimentos do mundo, títulos da dívida pública argentina. Ao contrário de Eufrásia, Nabuco não entendia nada do assunto. Evelina o acompanhou na etapa pós-Abolição, quando voltou para a diplomacia e para a religião. "Minha mulher e meus filhos formam o círculo dentro do qual sou intangível. Quanto mais esse círculo nos protege, mais nos aperta", escreveu em 1893. Não foi disso, afinal, que Eufrásia tentou fugir?

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