LATAS DE PAPELÃO.
José Rafael existiu em Volta Grande e também em minha vida. Longos anos nos aproximaram
de forma inesquecível, ainda hoje posso descrevê-lo: um homem miúdo, fala mansa, portador de deficiência
congênita em uma das pernas- a direita, descalço, sem óculos, cabelo aparado, roupas rigorosamente limpas, passadas, engomadas
em dias especiais. Usava uma muleta e não duas. Gostava muito do jogo do bicho,
bebia uma pinguinha vez por outra, fumava o cigarro de enrolar (assim dizíamos do
fumo desfiado e do papel de seda, próprios para a feitura manual do cigarro - porronca aqui no o norte). Dois
detalhes: depois que colocava o cigarro na boca não o tirava mais, até queimar
o beiço; nunca falava de religião, menos ainda qual lhe servia mais.
O trabalho e a deliciosa facilidade que Rafael tinha de
contar causos nos colocavam lado a lado. Também era uma pessoa confiável. Era um
homem inteligente.
Compreendo hoje que foi ele um ótimo empreendedor, um
astuto empresário que apesar do semi analfabetismo e da deficiencia fisica
soube sobreviver sem se pendurar no serviço publico: um costume de época.
Vivia dos serviços de limpeza de quintais. Fazia o que
podia e “terceirizava” o que não podia ao ajudante.Mas isso era “bico”.
Sua ocupação principal era a de quebrador de pedras. Estranho, não? Hoje sim; ontem consistia em mão de obra muito valorizada - não respeitada.
Sua ocupação principal era a de quebrador de pedras. Estranho, não? Hoje sim; ontem consistia em mão de obra muito valorizada - não respeitada.
Nenhum prédio podia prescindir da brita na massa de cimento
do alicerce e da laje, principalmente. Não era tempo de brita industrial. Pedras
amontoadas era sinal de prédio novo., uma espécie de senha: vem aí um novo prédio.
Zé Rafael se antecipava,
contratava o serviço e nos chamava a executá-lo.
Era uma diversão: ganhávamos um troco, estávamos na rua e
não trancafiados em casa, sabíamos de todos os acontecimentos na cidade, riamos
à vontade com os causos do Zé Rafael.
A maior dessas empreitadas foi a construção do prédio para
o hospital maternidade. Transformamos montanhas de pedras em brita e pó de
brita: subproduto valioso na construção civil. A unidade de medida era a lata (lembro
o leite americano Aliança para o Progresso) de vinte litros.
A "latinha" hoje é feita de plástico
De repente a brita industrial chegou nos “desempregando”.
José Rafael foi para o ramo do ferro velho: comprar e revender.
Ferro velho por assim dizer. Valia tudo: cobre, zinco, alumínio,
chumbo, estanho... metais.
Continuamos gravitando em volta dele, embora pudéssemos vender
ovos ao S. Aurélio e ao Sr. Clecildo, padeiros. Não criávamos galinhas
poedeiras, mas...
Estava tudo mais fácil, mais rentável,mais rápido. Rafael
nos ensinava bons costumes, não nos deixava faltar à escola. Era bom homem, bom
agregador.
Um dia quis enganá-lo e me dei muito mal. Juntei metais
até fazer bom volume e no meio disso coloquei varias “latinhas” de embalagem de
Pó Royal: muito bem amassadas, quase compactadas. Não sei mais onde as consegui.
Não se usava saco plástico, o papel dominava do açougue à
sacristia. Empacotei tudo. Levei à ele para pesar. Ele viu as “latinhas” em
meio aos metais. Percebeu a “esperteza”. Anunciou o resultado da pesagem, mas
despachou-me dizendo que pagaria mais tarde.
Astuto Zé Rafael! Queria que lhe desse um mote para com
ele reclamar ao papai da minha desonestidade. Está me devendo o dinheiro até hoje, não o
vale quanto pesa (papelão encharcado não tinha valor algum).
Onde errei? A “latinha” de embalagem de pó Royal era 90%
feita de papelão. Tinha três equenos aros de lata: o fundo, a coroa e a tampa.
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